Nem sempre é fácil aceitarmos ou encararmos com paz e alegria a dualidade a que estamos submetidos. Esta dualidade está presente em tudo, no nosso ser, nos nossos desejos, nas nossas acções e nos influencia e nos move constantemente.
Quando observamos algo em nós que não gostamos ou de que nos envergonhamos, na maior parte das vezes julgamo-nos ou reprimimos esse mesmo aspecto. Não são raras as vezes que nem alcançamos que se esse algo despertou dor ou vergonha em nós é para que possamos observar, abraçar e transformar essa sombra em luz.
Mas porquê esta dualidade? Penso que ela exista para que possamos aprender a cultivar aquilo que achamos que há de melhor em nós. E para que possamos ser/estar conscientes e de acordo com aquilo que nos move no presente.
E quem cria esta dualidade? Penso que cada um de nós a cria, de acordo com a sua bagagem, para que possamos eventualmente reconhecer o todo que somos.
A sombra é aquilo que não queremos encarar, ou aquilo que queremos ocultar dos demais. Ela é composta por pensamentos, emoções ou impulsos que recalcamos desde muito cedo já que sempre nos foi dito e incutido que estes não são aceitáveis na sociedade.
A sombra pode manifestar-se de várias maneiras. Ao sermos agressivos, ao abusarmos verbalmente de alguém que nos é chegado apesar de sermos formidáveis e boa pessoa com os amigos ou no local de trabalho. Através de mentiras e ainda de vícios ou refúgio em drogas, álcool ou comida.
Penso que é igualmente importante ressalvar que todos nós somos afectados e de forma colectiva por esta sombra. Podemos constatar isto através das desigualdades económicas e sociais e das guerras que se criam diariamente. Sabemos que mais de metade do mundo passa fome por causa dos nossos hábitos alimentares e no entanto, por vezes descuramos, vivemos bem com isso e vamos novamente às compras.
Quando dizemos que o mundo está ao contrário e que é uma desgraça é justamente uma manifestação da nossa sombra.
Por vezes rejeitamos ou consideramos um lado mais obscuro no nosso ser porque sempre nos disseram ou nos fizeram acreditar que temos algo de errado em nós ou que temos atitudes que não se devem ter. Ser homossexual, por exemplo, ainda é considerado um pecado ou anormalidade para muitos. Somos muitas vezes feridos e forçados a viver na negação daquilo que somos para não sermos rotulados ou sermos alvo de qualificações. Desde cedo construímos várias máscaras para que os demais não percebam os nossos defeitos e não nos considerem inferiores ou sem valor. Assim, esperamos que os outros nos aceitem e nos amem por aquilo que afinal não somos.
No meio disto tudo, para além de estarmos aprisionados a estas máscaras, acabamos por reprimir e recalcar o nosso verdadeiro eu que está lá para que possamos olhar com amor e bem de perto tudo o que somos para que encontremos a nossa luz. O nosso eu é cheio de contradições, opostos e paradoxos. Como poderíamos nós experimentar a felicidade se nunca tivéssemos experimentado a tristeza? Como poderíamos experimentar a coragem se nunca tivéssemos experimentado o medo?
Somos todos santos e pecadores. Somos todos o microcosmos e o macrocosmos. Tudo aquilo que reconhecemos de bom e de mau nos outros também existe dentro de nós. Inclusive, julgamos os demais constantemente, muitas vezes inconscientemente, projectando nos outros aquilo que somos ou aquilo que não somos mas que gostávamos de ser. Por exemplo: “Olha aquele deve achar-se grande coisa!” ou “Coitada, aquela precisa de atenção!”.
Comecemos então por olhar verdadeiramente para quem somos encarando a nossa sombra como nossa amiga. Vamos despir as nossas máscaras pouco e pouco. A sombra está lá para que nos lembremos que o lado mais obscuro que existe em nós tem por objectivo despoletar o melhor que há em nós. Aprendamos a perdoar e a aceitar os demais e a nós mesmos exactamente como são e somos ao invés de admirarmos e acreditarmos nas mentiras e máscaras criadas. Pois é justamente quando abraçamos a nossa totalidade, sombra e luz, que experimentamos liberdade.