top of page

Crianças do agora


Ana Marta Azevedo

Tive a oportunidade de passar os dois últimos meses a trabalhar diretamente com crianças em contexto de entretenimento. Passei o dia com várias crianças de várias idades e várias nacionalidades num espaço de lazer preparado para as divertir durante umas horas: jogos, desenhos, pinturas, artes manuais, consolas, dvds, colchões, espaço... Tenho a dizer-vos de que aquilo de que me apercebi não é uma realidade animadora.

Vamos ressalvar uma excepção correspondente talvez a uns 10% e vou falar dos restantes. Estamos a falar de miúdos dos 4 aos 10 anos que: não sabem cortar. Eles sabem que na teoria se enfia os dedos na tesoura e se abre e fecha...mas não sabem seguir uma linha, não sabem cortar devagar, não sabem ter paciência, nem querem. Retirar mais ou menos o desenho ao papel está bom.

Também não sabem moldar. Eu sei que o melhor que havia quando era criança era barro, não havia criança que se recusasse a tal proposta. Hoje o interesse mantêm-se, a resposta a "queres fazer argila?" continua a ser sim...mas para por aí. Segue-se "o que é que eu faço" e "como é que isso se faz". Não sabem sequer fazer um copo. Um cinzeiro, uma caixa, um simples recipiente, que era o que toda a criança fazia no meu tempo. Basta pegar num pedaço e moldar umas bordas. Por mais torto que fique o essencial estava lá. Assisti à impossibilidade de crianças não conseguirem descobrir como isso se fazia.

Também não há imaginação. Não sabem o que fazer com o barro, o que pintar, o que criar com meia dúzia de colchões e almofadas. Lembro-me de uma das coisas preferidas da minha infância ser construir casas/ tendas/ fortes com almofadas, lençois e pouco mais.

Artes manuais? Já vos falei da impossibilidade de fazer um copo em barro certo? Sendo isso o mais simples podem imaginar a impossibilidade de qualquer outra coisa mais complexa: artes manuais com rolos de papel vazios, cartolinas, tintas e outros materiais tornou-se tarefa apenas para mim mesma enquanto o autor da "obra" apenas segurava os materiais e me olhava com expressão de "e agora que faço com isto"? Já para não falar que, os que faziam algo, bem ou mal, o faziam em tempo record.

Esqueçam atividades de uma hora, ou meia hora, ou vinte minutos. Dez minutos era o que durava em média qualquer manualidade, fazendo tudo a ritmo frenético e concluido com um glorioso "já está". Passando à próxima. Mais dez minutos. Em meia hora tinhamos 3 ou 4 desenhos pintados em 15%, um bocado de barro que acabou por se manter disforme por incapacidade, um polvo de cartão mal feito e um ar de aborrecimento pela próxima atividade.

Mesmo os filmes e os jogos de consola perdem o interesse rápidamente. Não se concentram num filme inteiro. Dava por mim a assitir ao filme sozinha dando conta que afinal já todos tinham começado lentamente a fazer outras coisas.

Eu brincava com molas de roupa. Por mais de 10 minutos. Parece-me que a imaginação, a paciência, a criatividade, o trabalho com as mãos, está a desvanecer. Parece-nos que a criança do agora vem muito mais preparada que nós. Afinal eles desbloqueiam smartphones, jogam em aplicações, navegam em menus de consolas de jogos e põem dvds a funcionar melhor que muitos adultos. Mas essa rapidez e funcionalidade na ótica do utilizador está a transformar os miúdos nisso mesmo - apenas utilizadores. Utilizadores de coisas prontas, rápidas, já feitas.


Crianças do "agora" mesmo. Tudo está à distância do toque de um dedo e perdeu-se o uso das mãos, do corpo, da cabeça. Estes futuros adultos saberão utilizar tecnologia mas terão interesse em desenvolve-la? Terão curiosidade, capacidade de pensar, interesse em ir mais além? Neste mundo de estímulos rápidos em que consomem "gratificação instantânea" e seguem para a próxima?

Além de tudo isto, onde está o brincar na rua? O brincar na praia? O brincar na piscina? Porque estava este espaço cheio de crianças quando havia sol, praia e mar lá fora? Onde estavam os pais? Onde estava o tempo em familia, o ensino de coisas novas, a exploração?

Volto a ressalvar e a saudar os pais que não permitem que se façam disto os seus filhos. Mas reforço que é esta a maioria. É este o futuro. E o que temo é que este futuro traga uma geração desbronzeada que perdeu o contacto com a natureza, a empatia pelos animais, a vontade de explorar, o risco e a superação que traz o cair e o levantar. Uma geração que não saiba comunicar ou ter empatia social. Que seja infeliz na ausência de estimulos rápidos. Que seja mais e mais consumista.

Novos pais: soltem os filhos na natureza. Estimulem a criatividade. Mais é menos. A geração criadora da tecnologia de agora brincou com pedras. Não se esqueçam de ensinar coisas aos vossos filhos, de os levar a explorar, de os ensinar a ser pacientes e a observar. É fácil pô-los em frente aos tablets, mas nunca pensei que os efeitos fossem tão evidentes. Esta é a geração do futuro. Não a deixemos desconectar do que é mais importante - a família, os amigos, a natureza, o mundo lá fora - por estarem conectados a uma tela brilhante.

bottom of page