Mário Cordeiro é uma referência na Pediatria, a nível nacional e internacional. Autor de vários livros, que nos ajudam em cada uma das situações que vão surgindo nesta aventura que é criar e educar um ser humano.
"Para este pediatra, pai de 5 filhos, os pais são o melhor exemplo para os filhos e é para eles que as crianças olharão sempre que quiserem aprender. Educar é por isso uma construção conjunta, feita lado a lado, partilhando todos os dias, de mãos dadas.", in "Educar com Amor".
M.A.D.E magazine: Quanto ao seu livro, porquê o título "Educar com Amor"?
Dr. Mário Cordeiro: O título acaba por ser quase redundante, porque não há educação sem amor nem amor sem educação. Todavia, como os conceitos têm andado demasiado desavindos, vistos muitas vezes como formas antagónicas de estar na vida, ou seja, educar exigiria frieza e amor exigiria lassidão. Escolhi o título exactamente para acentuar isso.
M.A.D.E magazine: "Gosta-se das coisas, Adoram-se os deuses...Mas amam-se as pessoas". Porque é que começa o livro com esta passagem? Qual o seu significado neste contexto?
Dr. Mário Cordeiro: Porque gostar, embora seja um verbo que pode ter muito significado e força, não implica uma postura emocional, mas mais ética e estética, sem retorno do objecto ou situação de que se gosta – eu gosto de caril mas o caril não gosta ou deixa de gostar de mim. Adorar é unidirecional, daquele que adora para o ente, deus ou ser que é alvo dessa adoração – adora-se Deus mas Deus ignora-nos directamente. Amar, sim, implica reciprocidade, é difícil, exige cedência, tolerância, exigência, dádiva, entrega, exige o amar e ser amado… muito mais difícil mas muito mais humano.
M.A.D.E magazine: Quais são, atualmente, os erros mais comuns, cometidos pelos pais, na educação?
Dr. Mário Cordeiro: Confundirem limites e regras com frieza e distanciamento, censurarem a pessoa e não o comportamento, expressarem juízos de valor generalistas sobre casos pontuais em que o que há que valorizar são os comportamentos, e finalmente serem pouco coerentes e pouco consistentes, ameaçando e não cumprindo, prometendo e não fazendo, dando sermões e fazendo ou permitindo o contrário.
M.A.D.E magazine: Qual o papel das escolas no que respeita ao desenvolvimento da personalidade individual de cada um dos seus alunos?
Dr. Mário Cordeiro: O sistema de ensino/aprendizagem – que é o nome que deveria ter o chamado “sistema educativo” -, tem de respeitar a individualidade, promover comportamentos assertivos, descobrir e estimular talentos, dar sabedoria, para lá da informação académica, basear-se na aprendizagem pela arte e pela cultura, promover espaços amplos de liberdade física, de exploração dos cinco sentidos, mas também psicológicos e intelectuais, de expressão de emoções, sentimentos, ideias e projectos. A escola tem de mudar. E ser complementar da casa, e não competitiva. O objectivo é ajudar as crianças no seu percurso de vida, de forma a que aprendam e gostem de se aperfeiçoar, e não um sistema punitivo, examinador, baseado nos conceitos mais arcaicos da nossa herança da moral judaico-cristã.
M.A.DE magazine: Podemos realmente dizer que os nossos filhos são o nosso prolongamento? Em que sentido?
Dr. Mário Cordeiro: No sentido em que ajudam a colmatar o hiato psicológico e a angústia existencial, gerados pela consciência da finitude do tempo. Além disso são, claro, um prolongamento genético, mas a insistência nessa frase não se refere apenas aos filhos biológicos mas àqueles que de alguma forma apadrinhamos (mesmo adultos), e aos projectos criativos que temos.
M.A.D.E magazine: Afirma que uma das pautas para uma educação assertiva pressupõe, entre vários pontos, "viver o ócio e o prazer sem complexos". Como é que esta pauta se aplica na prática?
Dr. Mário Cordeiro: Vivemos numa sociedade de produção e trabalho que, por vezes, se tornam nos valores essenciais e quase exclusivos. A parte adrenalínica do “fazer” subjuga a parte endorfínica do “estar” – não se consegue viver bem, com boa qualidade de vida psicológica e física com tal desequilíbrio hormonal. Na prática, temos de criar, no quotidiano, espaços e tempos de liberdade criativa, ou para simplesmente contemplar, e fazer da frugalidade um dos maiores valores éticos. Um exemplo prático é acabar com esta overdose de TPCs e da invasão da casa e do fim da tarde, bem como do espaço família e amigos, pela escola e pelo trabalho.
M.A.D.E magazine: Geralmente, é dada a liberdade necessária às crianças/aos filhos?
Dr. Mário Cordeiro: É dada uma falsa liberdade, porque liberdade pressupõe autonomia e responsabilidade. E isso refere-se a liberdade física, relacional, de deslocação para a escola, por exemplo, de estar sozinho no quarto, etc. Os pais têm de vencer os medos dos papões, sem perder obviamente a obrigação de cuidar e de proteger os filhos. Não sou nostálgico dos tempos em que as crianças de tenra idade andavam sozinhas na rua ou ficavam em casa, desamparadas. Mas daí a uma hiperprotecção vai uma distância.
M.A.D.E magazine: Quais as maiores consequências de não darmos esta liberdade aos nossos filhos?
Dr. Mário Cordeiro: É criarmos pessoas que não saberão desenvolver, de forma assertiva, matura e rigorosa, a gestão da sua liberdade, tendo maior oportunidade de a usar de modo aleatório, sem nexo e à toa, com todas as consequências daí decorrentes, inclusive as de natureza ética.
M.A.D.E magazine: Os pais trazem muitas dúvidas acerca de como trabalhar o comportamento dos filhos para as consultas de pediatria?
Dr. Mário Cordeiro: Sim. Com mais e mais frequência, pelo menos na parte em que posso falar. Muitas das minhas consultas ficam na fronteira entre a pediatria e a psicologia… ou a sociologia. Quase como uma “comportamentologia”, se me permite o neologismo.
M.A.D.E magazine: O "Não" parece ter uma conotação negativa muito forte no que respeita à educação. E em que momentos podemos usar positivamente esta palavra?
Dr. Mário Cordeiro: O “não” a seco é duro, estimula as nossas suprarrenais a segregarem adrenalina e aumenta a raiva e a incompreensão. O “não” explicado, descodificado, centrado no facto e não na pessoa, desenvolvendo alternativas, com empatia e segurança, mostrando planos “b” e “c”, ajuda a desenvolver resiliência, crescimento e maturidade. E ajuda a combater o narcisismo latente do “quero tudo, já” e “acho que tenho direito a esse tudo”, um dos maiores riscos do presente.
M.A.D.E magazine: A verbalização dos sentimentos é muito importante. Mas até que ponto é que a mesma é fácil mesmo quando estamos a falar de pais para filhos e vice-versa?
Dr. Mário Cordeiro: Verbalizar sentimentos ajuda muito a “soltar a fera” – quem não teve já a experiência de desabafar com um amigo e sentir-se melhor só por descarregar os seus sentires, mesmo que o amigo não acrescente nada? Todavia, há sentimentos que a pessoa gosta de guardar para si, há 'timings' também de cada um para o fazer, há uma intimidade que não pode ser devassada e há também, por vezes, alguns sentimentos que preferimos partilhar com outros que não os pais, como acontece muito entre adolescentes e avós. Para lá da verbalização há outras formas de comunicação não verbal a que devemos estar atentos, como a linguagem corporal e as micro-expressões faciais, para dar um exemplo.