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A morte a lembrar a vida

Todos sabemos que vamos morrer um dia. Todos sabemos que temos de "aproveitar a vida", que é importante passar tempo com a família, com os amigos... que é importante relativizar as nossas tristezas e dificuldades e fazer o melhor de cada dia pois um dia tudo acaba. Mas, na verdade, pouco estamos conscientes disso regularmente, ou sentimos mais do que apenas uma vaga ideia dessa noção. As pequenas coisas da vida chateiam-nos, enervam-nos angustiam-nos... o trânsito, o chefe, aquele quilinho a mais. Os amigos e a família vão sendo muitas vezes adiados. Não os mais comuns, mas aquele com que "ainda temos de combinar um café". Ou aquele almoço de família que fica sempre por marcar porque "a família está sempre lá" e hão de haver outras oportunidades.


Na verdade pouco contacto temos com a morte na nossa sociedade de hoje. Em muitas outras a morte é mais comum, é vista, é falada, é "celebrada". Na nossa cada vez mais é escondida, é tabu, e quando acontece desenvencilhamo-nos dela como um lenço de papel usado, o mais rápido e discreto possível. Os velhos e doentes estão no lar, no hospital, e quantos deixam de ir ver familiares quando estes estão perto da morte. É uma defesa, uma proteção contra a dor, um evitar da imagem degradada de alguém que gostamos e um dia conhecemos cheio de vida. Mas não seria melhor não o evitar?


No fundo é perante as tragédias que a nossa mente muitas vezes desperta, leva um "abanão" e é obrigada a pensar em coisas que tende a evitar. Um acidente automóvel de um amigo que sobreviveu, um familiar idoso que enfrenta o seu fim. São esses momentos que nos fazem pôr em prespetiva a nossa vida. A morte obriga a pensar na vida. Relembra que não somos eternos. E subitamente, perante a sombra de uma pessoa que um dia conhecemos cheia de vida, forte, contando piadas e saboreando almoços, fazendo parte do nosso dado adquirido, de repente essa pessoa é um invólculo frágil de memórias que desvanescem, um corpo frágil que perde o sentido, que leva consigo apenas memórias e os prazeres que daqui se levam. E nesse confronto cai-nos a muralha do ego. Cai-nos o orgulho, a futilidade, a preocupação com coisas miudas. Queremos ir absorver a vida, fazer já o que pensamos "fazer um dia", ligar e dizer "amo-te", adiar tudo o resto menos aquele café que tem sido adiado, criar tempo, dar prioridade àquilo que agora pensamos que já deviamos ter dado, pois um dia pode ser tarde demais. Hoje já é tarde demais. Para muitas dessas coisas.


A vida é uma aprendizagem e a maior parte é aprender a viver. A morte, como oposto, pode ensinar-nos num ápice aquilo que realmente importa na vida. Talvez o cantacto com ela não deva ser evitado, mas enfrentado. Talvez existam coisas que precisamos ter presentes mais vezes. Coisas tão simples e tão urgentes, para que pensamos ter sempre tempo. Aquele trabalho que não nos faz feliz. Aquela viagem adiada. Aquele amigo que nunca mais vimos. Aquele almoço de família. Aquela conversa adiada. Aquele amo-te. Viver. Amar. Perder o orgulho, os jogos, as prioridades invertidas, os complexos, os medos. Agir, falar, combinar, fazer aquela chamada, ouvir aquela história que alguem tinha para contar.

Um dia vai ser tarde. E esse dia pode ser amanhã.


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